Tudo sobre as informações do acidente que matou o candidato Eduardo Campos em Santos SP
O acidente com Eduardo Campos e o cuidado com as informações na internet FDR ou não?– Arremetida ou não e o vídeo do CENIPA Gravador de voz sem informação do voo, como pode? Estamos em 2014, a informação flui literalmente pela ponta dos dedos, com os smartphones ditando a velocidade da informação. Esta é a parte boa. A parte ruim é que a velocidade da informação é inversamente proporcional a sua qualidade. Eu não critico pessoas passando informações via Twitter ou Facebook, mas acho irresponsável órgãos de imprensa, que deveriam ser fontes confiáveis, publicarem as informações sem que as fontes sejam verificadas antes. Isto faz parte de qualquer manual de redação, tanto quanto procedimentos feitos por pilotos todos os dias na aviação. Se os pilotos não seguissem seus manuais de procedimentos da mesma maneira que uma parcela da imprensa tem feito, teríamos pelo menos uns mil acidentes aéreos por dia. Vejam por exemplo as primeiras notícias sobre o acidente aéreo em Santos, via G1: Alguém falou em Helicóptero e isto foi considerado “fonte” para ser publicado, antes de qualquer verificação. Existem muito mais exemplos do desencontro de informações de hoje, mas não vou perder tempo comentando cada uma delas, fica apenas o recado: cuidado com as informações, especialmente com acidentes aéreos. E enquanto escrevo o @cardoso explicou essas barrigadas neste link. O que aconteceu e de quem é a culpa no acidente com o jato que estava Eduardo Campos? Um acidente aéreo não é um acidente de carro, no qual você julga que quem bateu atrás é o culpado. Da mesma maneira, não se sabe o que aconteceu até que os relatórios oficiais saiam. São muitas perguntas que precisam ser respondidas e não há um culpado, há fatores que somados contribuem para um acidente. Tudo o que for falado antes das investigações é especulação, desde o mau tempo até o choque com um helicóptero (sim, até isso foi falado no ar, na Globo, durante as transmissões). O que se sabe, ou quais são os fatos até agora A aeronave era um Cessna Citation Excel. É um jato executivo de alto padrão, com ótimos índices de segurança. O prefixo era PR-AFA, foto do cockpit dele abaixo. Ele havia decolado do aeroporto de Santos Dumont no Rio de Janeiro com destino ao Guarujá, onde pousaria na Base Aérea de Santos. Conheço muito bem a Base Aérea, foi lá que me formei em manutenção de aeronaves, e onde fiz estágio durante três anos. De acordo com informações da aeronáutica, ao tentar pousar em Guarujá, a aeronave arremeteu por causa das condições do tempo, portanto operava por instrumentos. A arremetida é um procedimento normal feito pelas tripulações em qualquer lugar do mundo quando a aproximação para um aeroporto não for estabilizada. Por aproximação estabilizada entenda: a velocidade correta, a altitude correta, a visibilidade correta em determinado ponto, entre outros. A arremetida é um fato tão natural (ao contrário do que uma parcela dos órgãos de notícia fazem crer) que ela é prevista nas cartas de aproximação por instrumentos. Colo abaixo a carta de aproximação ECHO1 para a Base Aérea de Santos: Marquei em vermelho a informação presente na carta: Em caso de arremetida (Aproximação Perdida), subir para 4.000 pés em curva ascendente à esquerda aproando NDB SAT para espera. Em termos leigos, a informação pede para que a arremetida seja iniciada com curva à esquerda e subindo para 4.000 pés (1200 metros) em direção à estação de rádio SAT. O procedimento é indicado pela linha tracejada na figura (se quiser saber mais sobre aproximação NDB, leia aqui mesmo no AeM). A carta de aproximação (que é oficial) pode ser consultada aqui no site da Aeronáutica. Perceba que há círculos hachurados na trajetória tracejada, indicando regiões de terreno alto (ou área restrita) em que altitudes mínimas devem ser mantidas. E agora uma imagem do Google Earth que mostra o ponto em vermelho onde aproximadamente o jato caiu: Bem, sobrepondo as duas imagens percebemos que realmente o Citation estava cumprindo o procedimento de arremetida, com curva a esquerda. O que a investigação vai revelar é se todos os outros procedimentos estavam de acordo (altitude, velocidade, proa, ect). Apesar do ponto da queda estar para dentro da linha tracejada, não se pode tirar conclusões, pois pode-se usar referências visuais, desde que esteja aproando o NDB conforme publicado. E como estava o tempo no momento do acidente? O METAR da hora do acidente indicava o seguinte: 131300Z 23007KT 3000 RA BR BKN008 OVC032 19/18 Q1022 RERA Traduzindo: O vento estava calmo moderado, vindo de sudoeste, visibilidade de 915 3000 metros, chuva moderada, névoa, nuvens a 250 metros, neblina (encoberto) a 975 metros, temperatura 19°C e pressão barométrica 1022 mb (ajuste de altímetro). Estas condições não são muito confortáveis para se pousar em Santos, especialmente para quem não for familiarizado. O ideal seria alternar, já que as condições estão muito próximas dos mínimos. Mais uma vez, isto é apenas uma opinião, em nenhum momento estou afirmando que tenha sido causa ou até fator contribuinte para o acidente. Breaking No momento em que escrevo, fico sabendo que o procedimento ECHO1 (acima) acabou de ser suspenso via NOTAM. Ao contrário do que você possa imaginar, isto também não tem a ver ainda com o acidente, é apenas uma medida cautelar, já que uma aeronave se acidentou durante um procedimento publicado e até que tudo seja esclarecido, mantêm-se a suspensão do procedimento. Conclusão Contenha seu ímpeto de querer achar a causa hoje. Ninguém sabe por enquanto o que levou ao acidente com o Citation, não houve nem tempo hábil para os investigadores se reunirem no local! Tudo que for falado em relação à bolas de fogo antes da queda, colisão com pássaro, colisão com helicóptero, enfim, qualquer causa que a mídia ou testemunhas oculares falarem neste momento, deve ser descartado como verdade até que a investigação conclua quais fatores contribuíram para que o resultado final fosse um jato de última geração, cheio de modernos instrumentos de navegação, terminasse destruído entre prédios na cidade de Santos. Update #1: Apenas para adicionar duas informações que têm populado o Twitter. A primeira refere-se à obrigatoriedade deste tipo de aeronave possuir CVR (gravador de vozes) e FDR (gravador de dados), as famosas caixas pretas. De acordo com o código federal americano (fabricante da aeronave e seguido no mundo todo) 14 CFR 135.151 que trata de COCKPIT VOICE RECORDERS, temos o seguinte: (a) No person may operate a multiengine, turbine-powered airplane or rotorcraft having a passenger seating configuration of six or more and for which two pilots are required by certification or operating rules unless it is equipped with an approved cockpit voice recorder that [...]14 CFR 135 Traduzindo: Qualquer aeronave que tenha mais de um motor, ou seja propulsionada por motores a reação e que leve mais que 6 passageiros e que dois pilotos sejam necessário para operação, deve ser equipado com o CVR. Logo, o Citation 560XL é com certeza equipado com gravador de voz. Em relação ao Gravador de Dados do Voo (FDR), o código americano nos informa o seguinte: (1) No person may operate a U.S. civil registered, multiengine, turbine-powered airplane or rotorcraft having a passenger seating configuration, excluding any pilot seats of 10 or more that has been manufactured after October 11, 1991, unless it is equipped with one or more approved flight recorders that utilize a digital method of recording and storing data and a method of readily retrieving that data from the storage medium, that are capable of recording the data specified in appendix E to this part, for an airplane, or appendix F to this part, for a rotorcraft, of this part within the range, accuracy, and recording interval specified, and that are capable of retaining no less than 8 hours of aircraft operation.14 CFR 91.609 Bem, aqui ficamos em uma área obscura, pois o código fala em 10 ou mais assentos de passageiros, e de acordo com a wiki, o Citation 560XL acomoda 9 passageiros, portanto, estaria isento da necessidade de possuir o FDR. No entanto, esta página de suporte da própria Cessna indica que o modelo possui o FDR instalado, já que há tarefas de manutenção aprovadas pelo FAA para manter o componente, portanto o Citation acidentado hoje deve possuir CVR e FDR. Se algum técnico que trabalhe com esse modelo puder confirmar, agradeço. Seria possível resolver o acidente somente com a conversa do cockpit? Sim, sem dúvida. Assim como o corpo “fala” aos peritos em um homicídio, também os destroços da aeronave conversam com os investigadores. Mesmo sem saber, através do FDR, qual a potência dos motores no momento do acidente, a maneira como o metal se deforma indica a rotação que era desenvolvida no momento. Até a maneira e o ângulo que a fuselagem atingiu o solo podem ser resolvidos apenas através dos destroços, daí a importância de não se alterar cena do acidente, algo lamentável que vimos acontecer hoje, inclusive com jornalistas tocando os destroços. A investigação forense é muito avançada e conheço pessoalmente vários “cabeças” envolvidos nisto, a maioria formados no ITA. O segundo motivo do update é em relação à desinformação sobre uma lei sancionada pela Presidente Dilma que torna sigilosa a investigação de acidentes aéreos no País. Tal qual a desinformação sobre o Marco Civil da Internet, pessoas tendem a ver algum tipo de censura ou jogada governamental ao verem o termo sigiloso acompanhado de investigação. Na cegueira (ou ódio político), esquecem que há convenções mundiais que regem a segurança aérea por exemplo, pois estamos longe de ser uma ditadura – o fato de ler esse blog indica isso. Digo-vos, se tem algo de bom para aviação brasileira feito nos últimos anos, foi a aprovação desta lei do sigilo. Lembram quando ocorreu o acidente com o Let 410 da NOAR e um delegado foi nomeado para as investigações? Escrevi à época: O inquérito policial é a melhor maneira de esconder evidências por medo de “ser levado a prisão”. O inquérito faz as pessoas se sentirem acuadas de falar a verdade, a tão esperada verdade que pode salvar tantas vidas no futuro. O que este sigilo aprovado por lei garante é que os investigadores do CENIPA possam fazer o seu trabalho de investigação apurando o que realmente importa, não liberando dados de gravador de voz por exemplo para delegados sem uma decisão judicial. É uma proteção para que pessoas de fora, não ligadas a aviação, conduzam a investigação como se investiga um crime. Ao final das investigações, o relatório continuará sendo público exatamente como ocorre hoje. Em nenhum lugar do mundo [civilizado], um delegado de polícia possui jurisdição sobre uma cena de acidente aéreo, a menos que haja fortes indícios de que houve ato terrorista. A investigação consiste em descobrir o que aconteceu e sugerir melhorias para que nunca mais aconteça, e não procurar um culpado como acontece em acidentes de carro. Update #2 – FDR ou não: O jornal hoje da Globo informou que esta aeronave não possuía gravador de dados do voo, apenas gravador de vozes. Verificando o Master Mel da própria fabricante, existe a possibilidade de ter as duas funções em apenas uma caixa (combined CVR/FDR), as duas funções em caixas separadas e também a opção de somente o CVR. Continuo aguardando alguém que tenha trabalhado com o PR-AFA para confirmar qual o tipo de configuração ele possuía. Update #3 – Arremetida ou não e o vídeo do CENIPA: Para saber mais sobre arremetida, aproximação perdida, porque o pouso foi tentado na pista 35 e não 17, vejam este post aqui no AeM do Gustavo Pilati. O post possui informações para se entender procedimentos operacionais, não é uma afirmação do que pode ter ocorrido em Santos. Hoje o Ministério da Defesa liberou o vídeo da “caixa preta” e de como é efetuado o processo de análise do gravador de voz do PR-AFA, e é possível ver o estado em que ficou o componente após o choque. Felizmente o módulo onde ficam as memórias que armazenam os dados/voz ficam muito bem protegidas (detalhes neste outro post). Aplaudo o uso das Redes Sociais e Youtube por parte da FAB e do Cenipa para nos manter informado do andamento da investigação. A partir das informações analisadas, muitas das dúvidas e “achismos” que hoje se espalham por aí terão uma resposta mais plausível, pelo menos inicial, do que possa ter acontecido – mas repito, apenas saber o que aconteceu não encerra o processo de investigação, ele vai profundamente analisar “o porquê” e não apenas o “como”. Segue o vídeo. Update #4 – FAB informa que dados no gravador não eram do voo acidentado Muita calma nessa hora. Como pode as conversas na caixa preta não serem do voo acidentado? Isto é possível? Vou explicar a possibilidade plausível. O gravador de voz é um equipamento obrigatório no Cessna acidentado, isto é ponto pacífico. Ele possuía o equipamento. O fato de ter uma gravação lá que não corresponde ao voo acidentado pode significar duas coisas: O equipamento estava inoperante e ainda dentro do prazo para ser consertado. O equipamento estava inoperante e ninguém sabia. No primeiro caso, explico que todas as aeronaves do mundo possuem um documento que se chama MEL (Minimum Equipment List). Este documento, criado pelo fabricante da aeronave e certificado pelas agências reguladoras (ANAC,FAA,EASA,etc) autoriza a operação de aeronaves com determinados equipamentos em falha por um determinado período de tempo. Existem categorias de reparo para cada componente em relação à sua importância ao voo. No caso do Voice Recorder do Citation XL, o Master Mel indica categoria “A” para o reparo, o que significa que este equipamento só pode estar inoperante por 3 dias seguidos E desde que não ultrapasse 8 voos consecutivos nesses 3 dias, ver figura com trecho do Master Mel da EASA: O Master Mel da FAA reporta a outro documento (14 CFR), que no caso também requer o reparo em 3 dias: Mini-Update 15/Ago Apenas para esclarecer sobre o Master Mel: uma aeronave que opere sob a RBHA 91 pode ter um MEL próprio, homologado pelo órgão regulador, baseado no MASTER MEL. Caso não tenha este documento, todos os equipamentos são considerados essenciais ao voo, logo, não poderia voar sem o CVR por exemplo. Por este motivo, o operador segue geralmente o MMEL. O CENIPA vai então investigar agora se estava documentado o fato do CVR do PR-AFA estar inoperante e se o prazo estava sendo cumprido. Sendo este o caso, não há ilegalidade por parte do operador ou qualquer conspiração, pois se o CVR estivesse inoperante, o seu chip manteria as gravações do último voo em que funcionou. Seria apenas azar e uma senhora coincidência. O segundo caso é mais complicado. Se o CVR estivesse inoperante mas não documentado (ninguém “sabia”), isto pode caracterizar uma violação ao RBHA (Regulamento Brasileiro de Homologação Aérea). Faz parte do checklist dos pilotos verificar a correta operação do CVR (há testes para isso), assim como faz parte do check de manutenção também (como não trabalho com Cessna XL, não sei o intervalo de verificação, mas com certeza há). Voar em violação a uma RBHA (ou CFR) causa punições severas, empresas podem ser fechadas e impedidas de voar por exemplo. É importante ressaltar que existem diferentes regulamentos para diferentes categorias de operação de aeronaves, cada categoria possui um código apropriado. Por exemplo, a aviação comercial é regulamentada pelo RBHA 121 (CFR 121), um código muito mais restrito e com muito mais controle do que o exercido em operações de taxi-aéreo (RBHA 135) ou aviação executiva (RBHA 91). Isto não significa que os aviões pequenos são menos seguros, de maneira alguma, significa apenas que o controle sobre um avião comercial que transporta 200 pessoas é mais rígido do que um jato que transporta 7, e isto faz sentido. Em qualquer dos dois casos acima, o CENIPA chegará à raiz do problema através da documentação da empresa responsável pela manutenção e operação do PR-AFA. Agora não saberemos mais o que aconteceu no acidente? Vão blindar? Não vão blindar nada. Sim, saberemos o que aconteceu, apenas levará bem mais tempo e muito mais engenharia forense por parte dos investigadores. Mais do que nunca, cada pedacinho da aeronave deve ser mantido isolado, pois através deles será possível saber indícios de velocidade, posição de superfícies, posição de manetes – cada detalhe será importante para montar o quebra-cabeças dos últimos minutos de voo. É possível desligar o CVR intencionalmente? Em alguns aviões sim, em outros não. Alguns aviões o CVR entra em funcionamento assim que qualquer motor for acionado. Não tenho informações documentais sobre o Citation XL.
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